E se um dia o Inverno se fechasse dentro de uma redoma de vidro fosco e cá fora, à solta, se libertassem os pensamentos rarefeitos de um mundo que não se coordena em seu proveito?
Estava pronto para o frio! Saí envolto em barreiras físicas que me ocultavam o corpo do mundo exterior curioso a tudo o que não existia em mim! Sentia-me transportado por ideias feitas de mim mesmo que se materializavam em pedaços de pano que não eram eu! Só a face e as mãos se mostravam aos outros, tal como eu era: corpo primeiro, eu depois.
Caminhei ao encontro de esparsas ideias que me orientavam momentaneamente. Chovia! Caíam bátegas simples de uma mistura de cinzentos imperfeitos, aos quais nenhuma virtude era reconhecida!
Na rua o cheiro a nada, era o odor da habituação ao mais mundano dos cheiros. Eram cheiros visuais que cristalizavam na memória a impulsividade de percorrer mais um instante. E os instantes sucediam-se sem contornos definidos, sem propósito de mutação.
Como que empurrado sem premeditação, choquei contra uma figura feminina de dimensões brutas, de semblante hiperbolicamente redefenido pela depressão e pela mágoa. A cabeleira era deixada ao acaso sobre um rosto de linhas rectas e maltratadas. O olhar intensamente renovado pela novidade de uma morte anunciada há muito, era como que um rejuvenescimento no seio de um hausto de decadência. Tinha na mão um velho livro, de pequenas dimensões, manuscrito, amarelecido pelos tempos intermináveis que passara na velha biblioteca, do velho sótão, da arrecadação da fábrica dos têxteis que antigamente se situava na esquina da Rua da Fábrica com a do Almada. Sem falsos gestos, estendeu-o e proclamou com uma voz débil mas suportada por uma esperança temerosa:
- Amas o sonho como à própria realidade. Porque para ti eles são a mesma face de distintas formas do existir!
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